A fantasia não é exactamente uma fuga da realidade. É um modo de a entender.
(Lloyd Alexander)



sexta-feira, 2 de abril de 2010

Elena


Sozinha naquele quarto vazio e mal iluminado pela penumbra prateada da noite, Elena sacudiu o corpo em fortes soluços de dor, a mesma dor que lhe esmagava o peito e lhe apertava o coração como uma mão gigante com os seus dedos desumanos e atrozes. Gemeu de angústia, sentindo o corpo definhar a cada soluço seco e sofrido. A seguir sentiu as lágrimas, densas e quentes, queimarem-lhe a pele do rosto com a sua impiedosa acidez, dissolvendo-lhe a sua máscara de mulher fatal, manchando a delicada colcha de linho com o remanescente de uma maquilhagem antes intensa e ousada. Sentia-as na boca, fundido-se com o gosto amargo que a agonizava. Um gosto de nada e um gosto de tudo. Um gosto de paixão com um travo de desonra. Desesperada, cerrou os punhos e esmurrou a cama, atormentada pelo odor que brotava do seu corpo. O perfume da luxúria. O aroma da culpa. O cheiro do ódio. Ódio dela e apenas dela. 

Num gesto impulsivo e obstinado, levou as mãos ao peito e rasgou o deslumbrante vestido de seda, vermelho da cor do pecado. Arrancou-o do corpo como uma maldição, como se com ele arrancasse tudo o que sentia e não queria sentir, mas o seu odor fétido e excitante ficou-lhe no corpo, na pele. Ficou para a enlouquecer e para lhe lembrar os erros que cometia, uns atrás dos outros. Para lhe lembrar o amor que renunciava em prol da vida de luxo que conquistara ao lado de um homem que não amava. O abismo que a separava das coisas que tinha e das coisas que queria ter, era apenas o resultado desses erros. Caminhava sobre uma ponte suspensa, uma ponte de orgulho e teimosia. De luxo e egoísmo. Se sabia isso, porque era tão difícil escolher para que lado cair? Era difícil, porque Elena sabia que estava perdida fosse qual fosse o lado que escolhesse.

Helga, Junho 2006

No âmbito do desafio de Abril da Fábrica de Letras sobre o tema 'Abismo'

17 comentários:

Poetic Girl disse...

Fantástico! Por vezes temos muito de Elena, acabamos nos acomodando a pessoas e lugares que não devíamos. E quando queremos sair, estamos literalmente amarrados... bjs

António disse...

Ás vezes o abismo está tão próximo...Perdido o amor? Que mais interessa? Que mais importa?
NADA

António

Eliete disse...

Helga gostei muito, embora, tenha sofrido junto com Helena.
Decisões erradas, imaturas covardes? Não sei mas uma coisa é certa: dói muito. bjs, Eliete

chica disse...

Lindo e coitada da Helena,Não? Mas muitas vezes é assim...beijos,tudo de bom,chica e FELIZ Páscoa!

lolita disse...

Ainda me lembro do abismo de emoções com que fiquei quando li este trecho pela primeira vez, e também me lembro da intensidade do teu abismo quando o escreveste.
Uma excelente pedaço de literatura que partilhastes com todos nós.

Um beiJo com cheiro a recordações, Ava

F Nando disse...

O saber sair no momento certo e esquecer o que fica para trás e dar o salto no desconhecido
Bjs

Pena disse...

Linda e Estimada Amiga:
Um texto com uma beleza admirável, apesar do sentimento triste. De desespero visível.
Não fique assim, POR FAVOR. A vida é extraordinária e a sua ternura de literatura deslumbra.
Escreve e expressa-se maravilhosamente.
Fico feliz por acreditar na alegria de alguém no seu coração doce.
Beijinhos amigos.
Sempre a estimá-la.
No maior respeito e fascínio.

pena

MUITO OBRIGADO pela sua amizade.
Bem-Haja, fabulosa e enorme amiga de bem.
Vá. Força.
Adorei.
O Mundo espera-a com o seu encanto e pureza fabulosas, entende?

El Matador disse...

Potente. Bem escrito.

Petit Leaves disse...

A ter que cair, o melhor cair de uma vez. Antes isso, que caminhar numa ponte suspensa. Isso sim, é aterrorizador.

m disse...

Muito bom, muito bom mesmo! Gostei mesmo muito :) beijo

mz disse...

As escolhas somos nós que as fazemos e quando no prato da balança os bens materiais e o amor têm o mesmo peso a escolha torna-se difícil.
Depois, mais tarde, quando o deslumbramento pelo luxo cai no vazio, o reconhecimento do erro torna-se no mais profundo abismo entre o que já se conquistou e o que realmente era mais importante.

Não sabia que existia esta planície...
Parabéns!

beijinhos

mz disse...

Ah...
esqueci-me de dizer o quanto gostei deste excerto 'Regresso a Villa Francesco' que já tem uns anitos olhando a data...
muito bom!

beijo grande*

Ricardo Fabião disse...

Em algumas situações, o abismo está dos dois lados; restando-nos apenas um engasgo, um caminho de não ir...

Lindo poema, Helga!

Abraços
Ricardo.

Johnny disse...

Gostei muito.

(está ali um arranca-se, que deveria ser arrancasse, mas são preciosismos que não têm a ver com a qualidade do texto e da história)

Teresa Diniz disse...

Helga
Não sabia que tinhas outro blogue. Fiquei admirada quando cliquei e descobri que eras tu, ou outra tu!
Gostei. Bjs

Helga Piçarra disse...

johnny, obrigada! Obrigada também pela correcção do texto. Foi de imediato corrigido.

Beijinho :)

Lala disse...

FABULOSO! Adorei querida!! A verdade é mesmo esta... às vezes todos temos uma pouco de "Elena"... nem mais!

Beijinho***

Nota: eu só gostava era de saber porque é que eu nunca dei conta deste teu outro canto?!?! Acho que ando distraída um pouco além de q.b. :|