Tinha
momentos de absoluta lucidez, alguns chegavam a durar dias, mas por vezes, e
cada vez com mais frequência, a mente traía-o e a realidade tornava-se um
distúrbio racional sobre o qual não tinha qualquer controlo. Na maior parte das
vezes não se lembrava do próprio nome nem reconhecia o lugar onde se encontrava.
Tudo na sua cabeça era branco, difuso e sem nexo. Quando a sua memória
recuperava a clareza, agarrava-se às recordações como um náufrago se agarra a
uma bóia de salvação e anotava nomes, incluindo o seu, datas, acontecimentos e
lugares. Anotava tudo o que se conseguia lembrar como quem anota os detalhes de
um percurso sinuoso, apenas para não se perder na volta do mesmo. Era
um ritual repetido e constante do qual tinha plena consciência e era
precisamente a consciência da sua própria demência que estava a dar cabo dele,
não era a loucura em si, e por vezes desejava esquecer-se de vez de quem era e
não voltar a mergulhar na lucidez da sua insanidade.
Desde
o dia em que lhe fora retirado o direito de viver a sua vida pacata e
razoavelmente feliz, sendo-lhe concedido apenas o direito de continuar a respirar,
que tudo deixara de fazer sentido. Perdera para além da razão de existir, o
sentido das coisas e com isso a sua própria dignidade. Vivia escondido, à
margem da lei e à revelia da sociedade. Quando calhava dormia ao relento e alimentava-se
do pouco que encontrava no lixo, que remexia apenas quando as ruas adormeciam. Não
queria a piedade de ninguém a não ser a dele mesmo. O peso da sua impotência
perante o rumo que o destino lhe traçara, transformara-se ao longo do tempo
numa humilhante e gigantesca culpa que o impedia de pôr fim à sua desgraça.
Helga, Outubro 2012
2 comentários:
Helga estava de férias quando publicaste esta história tão actual, que toca quem nunca imaginámos estar nesta situação. Beijinhos
Excelente texto! O que sabemos sobre os caminhos tortuosos da mente daqueles com quem nos cruzamos?
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