A fantasia não é exactamente uma fuga da realidade. É um modo de a entender.
(Lloyd Alexander)



quarta-feira, 21 de abril de 2010

Os Corvos


Há muito que anoitecera, quando completamente vestida de negro, Wendie desceu finalmente a centenária escadaria da mansão onde habitava, sentindo o que sempre sentia de cada vez que pisava aqueles degraus. Aquele nunca fora o seu lugar e aquele lugar nunca a deixou esquecer isso.  Era como uma cela de portas abertas de onde nunca conseguira escapar, apesar das inúmeras vezes que tentara. Uma masmorra de luxo que nunca lhe pertencera, nem mesmo agora, que uma parte da mesma era inteiramente sua, ou pelo menos assim pensava. À medida que pisava o rústico mármore gasto pelo tempo, podia sentir a atenção de toda a família sobre si e quase adivinhar o pensamento sórdido e mesquinho de cada um deles, que nem mesmo num momento delicado como aquele, se poupavam de a condenar e de a julgar, como se a quisessem responsabilizar pelo inferno em que tinham transformado a sua vida. Havia alturas em que achava que eles estavam certos - ela era a única culpada da encruzilhada em que se encontrava.

Estavam lá todos. Os funcionários do HSBC Holdings Bank e alguns dos seus melhores e mais respeitáveis clientes, entre os quais os Duques e os Príncipes de Kent. Os amigos do costume e os inimigos de sempre, infiltrados como espiões, como se quisessem certificar-se pessoalmente do sucedido. Até Nora, a amante pública do seu marido, parecia fazer parte da família, ao olhá-la do alto da sua arrogância  enroscada no seu milionário Vison que exibia como um troféu. Em silêncio e esforçando-se por manter a cabeça erguida e o olhar firme, Wendie passou pelo meio deles, como quem passa pelo meio de um bando de corvos sedentos e vigilantes.

Usando o seu melhor Armani e de sapatos primorosamente engraxados, Lord Charles Langley, esperava-a no meio do salão, acomodado no seu leito de morte sobre o sinistro caixão de mogno preto forrado de pura seda. Com uma expressão apática e indolente, Wendie aproximou-se do corpo do seu falecido marido e encarou-o pela última vez. O seu rosto definhado e embranquecido como uma vela de cera apagada, mantinha as mesmas feições austeras e rudes de sempre, e os quase vinte anos de idade que os separava, eram agora mais visíveis do que nunca nas suas faces côncavas e flácidas, porém por detrás da sua gélida palidez, o seu semblante hipócrita e dominador permanecia intacto e inalterável. Até na morte, Charles escolhera ser arrogante e superior, tal como o fora em vida. Estava-lhe no sangue, mesmo que o mesmo já não lhe corresse nas veias.

- Maldito sejas! - Pensou para si - Oxalá ardas para sempre no inferno! - desejou secretamente, sem conseguir lamentar a sua morte por um segundo que fosse e num acto absolutamente  irreflectido e ignorando as reacções que poderia provocar com a sua atitude, virou costas, caminhando de novo pelo meio do mesmo bando de corvos, provocando a sua ira, sentindo-os esvoaçar pela sala, sobre a cabeça dela, por todo o lado. Apressada voltou a subir a enorme escadaria  de mármore e refugiou-se no seu quarto. Encostada à porta fechada, sacudiu o corpo num soluço profundo e sentido e cedeu por fim ás lágrimas que ainda não tinha chorado e à dor que ainda não tinha sentido. Deslizou pela madeira maciça e envernizada e deixou-se cair no chão, abraçando os joelhos com os braços, tombando a cabeça sobre os mesmos com a força e o desespero de quem perdeu o seu amparo, o seu sustento e o seu rumo, ainda que tudo isso fosse o seu maior infortúnio.

Helga, Novembro 2008

13 comentários:

Lala disse...

Lindo Helga! Sombrio. Frio. Mas lindo.
Ao mesmo tempo que vive de aparência, Wendy não é feliz...
Ao mesmo tempo que não suporta o falecido, Wendy sofre por ele...
'pobre menina rica'!

Beijinhos**

ps: adorei a mistificação! Corvos... são sempre mau sinal!

Fê blue bird disse...

Viver dependente, prisioneira dos luxos,não é ser feliz.
Muita gente vive assim, afastada de si própria e dos seus valores.
Excelente texto.
Parabéns e obrigada pelo carinho que deixa no meu blogue.
Beijinhos

vieira calado disse...

E já agora...

a dos vampiros!...

Bjs

Helga Piçarra disse...

Vieira Calado... já agora, porque não?

Parece que estão na moda!

Bjs :)

Ava disse...

O texto está fabuloso, aliás, como todo o resto, é uma história fantástica e tens muito para continuar, pois eu estou ansiosa de poder reler tudo novamente.

Um beiJo, Ava.

By Me disse...

MAIS UM BELO CONTO...UMA MULHER QUE LIGADA A UM HOMEM QUE NÃO LHE DIZ NADA...E DEIXOU-SE APRISIONAR UMA VIDA INTEIRA...ANTIGAMENTE ERA ASSIM...INFELIZMENTE DEPENDIAM DOS MARIDOS PARA TUDO...AINDA HOJE HÁ CASOS...DESSES E HÁ OUTROS PIORES...DÃO-SE PORQUE DÁ JEITO A AMBOS...UM JOGO PERVERSO DE INTERESSES E EGOÍSMO EM QUE OS FILHOS SÃO AS PRIMEIRAS VÍTIMAS

ABRAÇO AMIGO

Juci Barros disse...

É impressionate o seu dom com as palavras. Não deixe de escrever jamais.
Beijos.

mz disse...

Existem pessoas que ficam 'agarradas' a lugares mesmo tendo a noção de não pertencerem a eles.A tua personagem é um exemplo disso. Mesmo não sendo feliz, sente-se que a perda daquele homem é uma perda sentida. Afinal ele era muito mais importante do que era suposto.

Mais um capítulo?

beijinhos

Anónimo disse...

Muito bom!

Passa no meu blog e diz o que achas.
Não gostavas de te inscrever gratuitamente, sem nenhum compromisso e ter descontos em todos os produtos? Ou até vender?

Diz algo pf.

beijo

Juci Barros disse...

Tem um mimo pra você lá no blogue. :)

meus instantes e momentos disse...

que bom voltar aqui....
lindo post, parabens
Tenha um ótimo final de semana.
Maurizio

Fê blue bird disse...

Helga:

Tenho no meu blogue um selo para si que criei para homenagear todos os blogues e todas as pessoas que são especiais para mim.
Obrigada por estar desse lado!
Um beijinho

O Profeta disse...

Hoje ofereci as cores da minha paleta
A uma amiga na sua dor
Ouvi seu choro ao meu ouvido
No fatalismo do desamor

Hoje o sono acordou-me
A nostalgia agitou suas asas cinzentas
Esqueci no acordar o ultimo abraço
E contei as nuvens que eram tantas


Doce beijo