Aquela mulher, cujo corpo tinha a sensação de não lhe pertencer, mas que parecia encarnar naquele momento, despejou com prática e naturalidade o conteúdo de uma lata de atum para dentro do aromático refogado de tomate com coentros, que fervilhava no fundo do tacho, mexendo e envolvendo os ingredientes com cuidado.
- Cheira bem. - Observou com satisfação uma voz infantil atrás dela, fazendo-a voltar-se e sorrir. Nunca tivera filhos e naquele instante soube-lhe bem a sensação de afecto e cumplicidade entre ela e aquela criança - que pela sua aparência e estatura, não deveria ter mais de 12 anos de idade - concluindo sem dificuldade que se trataria do filho da mulher que encarnava.
- Obrigada. - Agradeceu, sem perder o sorriso terno e afável. Tapou o tacho, pousou a colher de pau e limpou a humidade das mãos ao avental, dirigindo-se naturalmente ao armário das mercearias - Que maçada! - Constatou com algum desagrado ao abrir a porta do mesmo - Ia jurar que tinha pelo menos um pacote de natas. E agora como faço o molho?
- Queres que vá buscar? - Prontificou-se - O supermercado ainda está aberto.
- Não te importas? Já está a escurecer.
- Não tenho medo do escuro. Aproveito e trago uma pastilha. Se tu deixares, claro.
- Claro que deixo. - Consentiu sorrindo, retirando o porta moedas da gaveta da mesa da cozinha - Toma. Deve chegar. - Informou, dando-lhe um par de moedas para a mão, passando a sua carinhosamente pelo seu cabelo rebelde e alourado - Traz duas pastilhas se quiseres. Tem cuidado com a estrada. - Aconselhou maternalmente.
- Não te preocupes. Estou habituado ao caminho.
- Leva o telemóvel. Qualquer coisa liga-me.
- Desde quando ficaste tão galinha? - Gracejou com alguma estranheza, como se não fosse habitual nela tanta preocupação.
- Leva-o. Pode ser? - Insistiu, sem saber exactamente porquê.
- Está bem. Eu levo-o.
Mexeu o refogado mais uma vez e verificou se a massa estava cozida. A naturalidade com que realizava tarefas - tal como cozinhar como se toda a vida o tivesse feito - causava-lhe uma sensação de estranheza, assim como tudo naquela casa. Parecia conhecer todos os seus cantos, no entanto sentia-se uma estranha dentro dela, perdida e deslocada. Procurando alguma companhia ligou a televisão. Reconheceu de imediato a jovem loura e bem apresentada que falava em frente a uma plateia de jornalistas. Era uma actriz. Vira-a em várias séries policiais, embora naquele preciso momento não se conseguisse lembrar o nome de nenhuma delas. Subitamente a imagem da bonita actriz desapareceu do ecran, dando lugar a imagens difusas e um pouco difíceis de perceber. Uma criança indefesa gritava e esperneava em agonia, enquanto o que parecia ser a sombra de uma forma humana, a mordia e comia, emitindo sons e grunhidos como um animal. Estremeceu e sentiu o coração bater mais depressa, como se o mesmo fosse a única coisa sua, que aquela mulher que encarnava possuía. Conseguiu ver finalmente com clareza um homem - sem rosto - de mãos esguias e firmes, segurando o frágil corpo daquela pobre criança, saboreando-a com a mesma satisfação e apetite de quem saboreia com prazer uma talhada de melancia, fresca e doce. Os gritos pararam, o animal parecia saciado e a sua vítima sem vida, porém o coração dela batia cada vez mais e mais - assustada. Em pânico! No fogão o refogado queimava e a massa engrossava.
O telemóvel vibrou sobre a mesa, sobressaltando-a, e apesar de atormentada apressou-se a atender - Sim?
- Sei que tu não és a minha mãe, mas por favor ajuda-me! - A voz assustada do outro lado da linha, estarreceu-a - Ajuda-me, por favor! Ele vem atrás mim! Tenho as tuas natas. Ajuda-me!
- Quem? - Quis saber apavorada, ainda com as imagens que acabara de ver na televisão a passarem na sua cabeça - Quem vem atrás de ti?
- Por favor! - Chorou, ofegante, assustado, escondido provavelmente - O homem sem rosto. Ele vai apanhar-me, e comer-me, e matar-me... ajuda-me! Ajuda-me! - Gritou, aflito e sem saída.
Naquele momento foi como se o chão se abrisse e a engolisse - lentamente. Não percebia se enquanto caía naquele buraco negro, abandonava o corpo daquela mulher ou se efectivamente o encarnava de vez. Estava escuro. Vazio. Silencioso. Não conseguia respirar. Continuava a cair na escuridão profunda. Desamparada e sem ter onde se agarrar. Sufocada, abriu os olhos, sacudindo o corpo num soluço forte e angustiado como se os seus pulmões acabassem de receber todo o ar que precisavam para respirar. O coração batia-lhe preso na garganta, ouvindo-se no silêncio da noite como um tambor descompassado. Sentia as pálpebras húmidas e a boca seca. Respirava ofegante e aterrorizada. Demorou algum tempo para perceber que estava deitada sobre a sua cama, com as mãos cravadas nos lençóis com tanta força, que lhe doíam os nós dos dedos. De olhar escancarado, tentou controlar a respiração e vencer o pânico, o medo.
As horas - pensou - como se fosse importante sabê-las naquele momento. Mas não teve coragem de se mover para olhar para o despertador sobre a mesa de cabeceira, apenas a escassos centímetros dela. Continuou de olhos escancarados, presos nas sombras e no vazio do tecto. O António, o seu marido - a sua salvação. Mas o António trabalhava por turnos e naquela noite pertencera-lhe trabalhar a noite toda. Só chegaria de manhã. Dali a uma eternidade. Estava completamente sozinha e assustada. Sentia a bexiga cheia, quase a rebentar, mas não se atreveria a sair daquela cama por nada. Em breve haveria luz. Em breve largaria os lençóis e as mãos deixariam de lhe doer. Em breve estaria calma, muito mais calma, e lentamente sentiu-se acalmar. Muito lentamente. Permaneceu quieta até o dia nascer. Até o António chegar. Quando sentiu a chave na porta, sorriu de alívio - ou chorou - não se lembra. Sabe apenas que saltou da cama quando o viu entrar no quarto e se jogou nos braços dele, sentindo-se finalmente confortada e protegida.
- Estás bem? - Perguntou um pouco hesitante e preocupado.
- Sim! - Respondeu apertando-o contra ela, como se não o quisesse largar nunca mais - Agora estou bem!
Instantes depois, ele servia-lhe um chá calmante, retirado dos seus armários, preparado na sua cozinha, servido nas suas chávenas. Aquela era a sua casa! Seria?
- Mais calma? - Perguntou com um sorriso carinhoso.
- Sim, obrigada. O chá está delicioso.
- Vou tomar um banho. Ficas bem?
- Vai. Estou bem. - Tranquilizou-o, acariciando a caneca quente entre as mãos, reconfortada pela sua companhia.
- Ah... já me esquecia. - Informou, retirando do bolso do casaco um pacote de natas, que colocou sobre a mesa com naturalidade - Trouxe o que me pediste. - E beijou-a na testa deixando a cozinha.
De olhar petrificado, ela sentiu o coração parar de bater dentro do peito e o chão fugir-lhe debaixo dos pés - como se mergulhasse de novo no mesmo vazio escuro e profundo - não apenas pela aterradora coincidência, pois tinha a certeza de não lhe ter pedido aquelas natas, mas principalmente pelas marcas cravadas na compacta embalagem, como desenhos de pequenas impressões digitais ensanguentadas.