A fantasia não é exactamente uma fuga da realidade. É um modo de a entender.
(Lloyd Alexander)



domingo, 4 de agosto de 2013

O Mendigo



Tinha momentos de absoluta lucidez, alguns chegavam a durar dias, mas por vezes, e cada vez com mais frequência, a mente traía-o e a realidade tornava-se um distúrbio racional sobre o qual não tinha qualquer controlo. Na maior parte das vezes não se lembrava do próprio nome nem reconhecia o lugar onde se encontrava. Tudo na sua cabeça era branco, difuso e sem nexo. Quando a sua memória recuperava a clareza, agarrava-se às recordações como um náufrago se agarra a uma bóia de salvação e anotava nomes, incluindo o seu, datas, acontecimentos e lugares. Anotava tudo o que se conseguia lembrar como quem anota os detalhes de um percurso sinuoso, apenas para não se perder na volta do mesmo. Era um ritual repetido e constante do qual tinha plena consciência e era precisamente a consciência da sua própria demência que estava a dar cabo dele, não era a loucura em si, e por vezes desejava esquecer-se de vez de quem era e não voltar a mergulhar na lucidez da sua insanidade. 
 
Desde o dia em que lhe fora retirado o direito de viver a sua vida pacata e razoavelmente feliz, sendo-lhe concedido apenas o direito de continuar a respirar, que tudo deixara de fazer sentido. Perdera para além da razão de existir, o sentido das coisas e com isso a sua própria dignidade. Vivia escondido, à margem da lei e à revelia da sociedade. Quando calhava dormia ao relento e alimentava-se do pouco que encontrava no lixo, que remexia apenas quando as ruas adormeciam. Não queria a piedade de ninguém a não ser a dele mesmo. O peso da sua impotência perante o rumo que o destino lhe traçara, transformara-se ao longo do tempo numa humilhante e gigantesca culpa que o impedia de pôr fim à sua desgraça. 


Helga, Outubro 2012

domingo, 15 de janeiro de 2012

Fui ver o Mar


Pegou no casaco e nas chaves do carro e bateu a porta do apartamento vazio. Desceu as escadas dos três singelos andares que a separavam da rua húmida e envolta num cenário nostálgico de Outono. Pisou o enorme manto de folhas secas espalhadas pelo chão e voltou a bater a porta, desta vez do seu carro. Acomodou-se nos seus bancos de couro, encaixou o cinto e ligou o rádio, procurando um pouco de companhia enquanto atravessava as sinuosas e movimentadas ruas da Vila. Deixou-a finalmente para trás e agora era só ela e a serra. Seguia a estrada sem rumo, embora soubesse exactamente onde a mesma a levava. Ao fundo começou a ver o mar. Imenso e azul como o azul do céu. Esboçou um sorriso e desligou a música. Escutou a paz e o sossego de uma paisagem que parecia esperar por ela. Um lugar distante, mesmo ao pé de casa. Um paraíso!

Saiu do carro e ajeitou o denso casaco de lã junto ao corpo. A aragem fresca brincava com os seus cabelos soltos e perfumados. A brisa do mar abraçava-a, reconfortava-a. Adorava o mar. Era o seu berço. Se ela foi alguma coisa ou alguém numa outra vida, foi Sereia. Respirou e brincou na imensidão das suas águas salgadas e cristalinas e encantou marinheiros perdidos no mar alto, com melodias que o seu pensamento ainda guardava. Subitamente pensou nele. Nos seus olhos cor de mar e no seu sorriso, e o seu sorriso fê-la sorrir também. Imaginou-o vestido de branco, acenando-lhe no cais e sentiu saudades dele. Não de o ver acenar, mas de o ver apenas. Ajeitou o casaco mais uma vez e correu para o carro. Correu para casa. Subiu dois a dois os degraus dos três singelos andares que a separam do apartamento vazio e o mesmo já não está vazio. Ele chegara! Como se ele fosse um marinheiro acabado de chegar do mar alto, atirou-se com saudade nos seus braços. Um pouco confuso, ele sorri sem perceber a sua precipitação, pois está com ela todos os dias. Ela olha-o nos olhos e igualmente com um sorriso desfaz a sua dúvida - Hoje fui ver o mar…

Helga, Novembro 2009

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Esperança


Havia passado apenas um mês desde que chegara àquele lugar e a tosse e as dores no peito tinham melhorado significativamente. Sem dúvida que o clima ameno e civilizado do campo muito tinha contribuído para isso. A calma dos dias e a tranquilidade das noites revigoravam-lhe não só o corpo débil e fragilizado, mas também a mente, renascendo-a a cada dia. Mas acima de tudo era a distância da sua vida que melhor lhe fazia. A ausência das preocupações laborais e da azáfama de uma cidade agitada e poluída como Lisboa, parecia ser a melhor cura naquele momento. Matilde não podia estar mais grata pela insistência exaustiva da sua irmã, para que passasse uns tempos longe de tudo isso. Joaquim e Custódia tinham-na recebido em sua casa, um pequeno paraíso perdido nas planícies alentejanas, com toda a simpatia e hospitalidade como se ela fosse da família.

Todos os dias Alzira, a não menos simpática e prestável empregada, lhe preparava um aromático chá de ervas, que apanhava no jardim da casa todas as manhãs pela fresca. Uma efusão milagrosa que penetrava no íntimo dos seus pulmões, como uma injecção temporária de alívio e bem-estar. Sentada no banco de pedra do alpendre junto ao enorme pote de barro, de onde brotavam belas rosas silvestres e na agradável companhia do canto matinal dos pássaros, que num coordenado vaivém saltitavam de árvore em árvore, Matilde saboreava o seu chá com toda a calma do mundo, deixando que o seu aroma quente e apaziguador a perfumasse lentamente por dentro, inundando o seu peito de esperança. Esperança por melhores dias, sem dores e sem sofrimento. Sem desejar estar onde não estava e desejar ter o que não tinha. Esperança de voltar a sorrir com a confiança que sempre sorrira e voltar a abraçar o tempo sem medo.

- Bom dia. Como se sente hoje? - Interrompeu delicadamente aquele momento, com um sorriso afável.
Matilde ofereceu-lhe um sorriso franco e animado, enquanto Custódia se sentava a seu lado - Sinto-me muito bem. Este lugar é absolutamente fantástico.
- Sim, é. - Confirmou, acompanhando-lhe o olhar que voltava a dispersar-se pelo campo à sua frente.
- Não sei porque razão nunca tinha vindo aqui antes. É tão calmo, tão lindo...
- Está aqui agora e isso é que importa. - Tranquilizou-a com ternura - Vamos sempre a tempo de fazer as coisas que nunca fizemos.
- Obrigado por me receber tão bem. A Custódia e o Joaquim têm sido como uma família para mim. E a Alzira estraga-me com mimos. Este chá é divino.
- É um prazer tê-la aqui. E a Alzira é mesmo assim. Vive para o bem-estar dos outros. Aproveite os mimos dela, são únicos e sinceros.
- Vou aproveitar. Sabem tão bem.
- Que está a ler? - Perguntou interessada, referindo-se ao livro pousado no banco a seu lado.
- White Feather de Suzanne Stutman. - E sorriu, passando a mão pela capa do livro, como se o mesmo lhe fosse muito querido e especial - São poemas. Uma jornada para a paz, segundo a autora.
- E a Matilde, o que acha?
- Não sei. São apenas palavras de conforto e de esperança. Às vezes é tudo o que basta, não concorda?
- Sim. Às vezes é tudo o que basta.
Helga, Fevereiro 2011


HOPE

When I am happy, all the Earth sings with me
Flowers burst with joy, birds circle the Sky
And life has meaning for Everyone
For I deserve no less than this:
Peace and Happiness


(Suzanne Stutman in 'White Feather')

sábado, 15 de janeiro de 2011

Sempre sonhei com uma Casa


Sempre sonhei com uma casa. Uma casa especial. Uma casa de persianas azuis com roseiras bravas e uma fonte de água cristalina com peixes cor de prata. Uma casa na praia, ancorada sobre a areia fina e tocada pela espuma do mar. Uma casa no topo da montanha mais alta, onde a brisa do vento sopra livre e imaculada. Uma casa no bosque, rodeada de pinheiros altos e aromas perfumados. Um castelo no paraíso da minha imaginação, com cavalos brancos e vestidos de princesa. Um castelo de janelas decoradas e jardins de encantar. Sempre sonhei com uma casa. Uma casa especial.

Helga, Outubro 2008

sábado, 4 de dezembro de 2010

Simplesmente


Não sabia exactamente o que sentia. Era como se a mochila - imaginária - que carregava às costas, ficasse cada vez mais difícil de suportar. Era como se toda a tralha que juntara ao longo dos anos, pesasse cada vez mais e mais. Sabia que estava no seu limite. Sentia-o. Era preciso deitar fora algum peso. Limpar a sua vida. Renovar o seu sorriso. Mas não sabia por onde começar. Pousou a mochila - imaginária - e tombou pela leveza da sua ausência. Parou. Esqueceu tudo. Ignorou o telefone que tocava. A chuva que caía e o sol que brilhava. Esqueceu que tinha fome, frio ou sono. Parou simplesmente de viver. Porém o seu coração continuou a bater. Igualmente esquecido. Ela não o ouvia. Ela não ouvia nada nem ninguém.

Foi então que olhou a mochila - imaginária - caída no chão. Toda a sua vida pulsava no seu interior, em cada fecho, em cada bolso. Sabia que assim que a abrisse, libertaria todas as suas memórias. Todos os medos e todos os sonhos. Todo o seu passado. Mas libertar o passado, naquele preciso momento, não a libertaria do que a impedia de se mover, pois não era o passado que lhe pesava. Era o presente e as decisões que não tomava. As palavras que não dizia e a coragem que não tinha. O peso maior estava dentro dela. Em cada fecho, em cada bolso do seu íntimo. Desamparada e perdida, voltou a coleccionar sonhos e a guardar memórias. Enfrentou medos e ganhou coragem. Recomeçou simplesmente a viver.

Helga, Maio 2010

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Doce Recordação


Até numa cidade como Nova Iorque, a Primavera parecia ser a estação do ano mais bonita e jovial. Todo o ar saturado pelos escapes que nunca descansavam, parecia renovar-se e as ruas enchiam-se de luz e cores perfumadas. Confortavelmente instalada no seu apartamento, Audrey oferecia o corpo ao manifesto das carícias do sol que entrava pela janela e inundava toda a sala com a sua jubilosa graciosidade. Mas apesar da aprazível sensação que a envolvia, o seu pensamento estava a milhas daqueles raios de vida que a aqueciam. Num canto muito especial da sua memória ainda tocava uma melodia muda e silenciosa, como se dentro dela houvesse uma orquestra imaginária que tocava a mais bela melodia de sempre. O seu corpo ainda não despira o vestido de longas saias de organza e ainda sentia na pele a envolvência do olhar doce e sereno e a delicadeza dos braços que a conduziam na perfeição, pela acolhedora sala de tapetes clássicos e candelabros de velas nas paredes. Na sua boca ainda não se dissolvera o gosto do beijo que a inebriava e fazia suspirar, como uma adolescente apaixonada por uma ilusão. Ainda se agarrava a esse momento especial, como quem se agarra a um amuleto sagrado, no qual se depositam todos os sonhos e no qual se conseguem todas as forças para vencer a saudade que aquela doce recordação lhe trazia, sempre que tinha um pouco de tempo livre para se entregar a ela.

O seu livro estava pronto. Era o seu quinto romance e era aguardado com grande expectativa. Porém sentia que a maior expectativa era a sua, pelas emoções em que se inspirara para o escrever. Sentia que de todos eles, era aquele a que mais se entregara, que mais tinha de seu e de verdadeiro em cada palavra. Fazer sonhar os outros era algo a que já se habituara e fazia-o com naturalidade e paixão, mas desta vez sentia que oferecia os seus sonhos mais íntimos em vez de apenas os sonhos ilusórios das suas palavras. Estava nervosa e apreensiva e ao mesmo tempo serena e expectante. O preço do desafio era mais alto que o habitual e isso fazia-lhe pulsar o coração com mais força. Contudo a sua obra ainda não tinha nome, coisa que estava a deixar a sua agente um tanto impaciente, pois o timing do seu lançamento estava a esgotar-se lentamente. Eram as obrigações de um compromisso às quais Audrey não podia fugir, por mais que tentasse desobedecer às formalidades - que na sua opinião retiravam alguma da magia a tudo o que escrevia - mas ela sabia que era a única forma de poder partilhar com o mundo as suas palavras.

Helga, Maio 2010

terça-feira, 13 de julho de 2010

O Soldado


Ela - Estás a ver aquele descampado ali?
Ele - Sim. O que é que tem?
Ela - A última vez que aqui passei, pareceu-me ver lá uma pessoa.
Ele - Que tipo de pessoa?
Ela - Um soldado.
Ele - Um soldado?
Ela - Sim. Disparou contra o próprio peito e depois desapareceu.
Ele - Desapareceu? Como assim, desapareceu?
Ela - Não sei. Deixei de o ver. Na verdade nem sei se ele alguma vez lá esteve. Mais ninguém pareceu incomodado com o facto de ele se ter suicidado.
Ele - Estás-me a dizer que viste um fantasma?
Ela - Talvez. Se estava lá e depois já não estava.
Ele - Acho que andas a ver coisas. O corpo de um soldado morto em pleno parque, teria sido falado com toda a certeza, não achas?
Ela - Achava, se não fosse um pequeno detalhe.
Ele - Que detalhe?
Ela - Enquanto estamos aqui a falar, ele reapareceu exactamente onde o vi pela última vez. Disparou de novo sobre si mesmo e voltou a desaparecer.

Helga, Julho 2010

No âmbito do desafio de Julho para a Fábrica de Letras sobre o tema 'Disparou'

sábado, 26 de junho de 2010

Renascer da Saudade


À medida que o luxuoso pássaro de aço se aproximava, o céu desvendava a suavidade e os mistérios de uma cidade romântica e serena. Uma cidade bela e encantada. Musa inspiradora até para os menos criativos, Florença era o berço do renascimento, do humanismo da arte. Um lar dócil e humilde, de aromas balsâmicos e de gentes alegres e hospitaleiras. De olhar vago e pensativo, Elena contemplou através da pequena janela do seu jacto privado, a beleza e a humildade da cidade que a recebia, como se a mesma fosse uma estranha parte de si. Uma parte que ela não conhecia fisicamente, mas que sabia fazer parte da sua vida desde sempre. Era a terra que vira nascer o seu pai. O berço das suas raízes. Era por isso que estava ali - para recuperar o que lhe pertencia por direito.

Quando abriu a janela da acolhedora suite que Cindy - a sua assistente pessoal - lhe reservara naquela estalagem sofisticada e tranquila nos arredores da cidade, fechou os olhos e inspirou o calor ameno do meio-dia, deixando-se envolver pelo eco da paisagem campestre, que lhe devolvia na brisa morna uma paz reconfortante e merecida. Tentou desfrutar daquele pequeno instante, tanto quanto lhe foi possível. Sabia que a sua vida estava prestes a mudar para sempre, esperavam-na alterações que ela não planeara e naquele momento decidiu que não ia planear mais nada. Já não estava sozinha, agora dividia a sua vida com alguém muito especial e todas as decisões seriam tomadas em função disso. Estava cansada de cometer erro atrás de erro. Estava cansada de sofrer as consequências das suas decisões.

De sorriso no rosto passou a mão pelo ventre, acariciando com ternura a sua suave e notória saliência. Pela sua mente saudosa e apaixonada, passaram todos os momentos possíveis àquela concepção. Momentos especiais de ternura e paixão, de amor eterno. Momentos que não sabia se voltaria a viver e receou momentaneamente o impacto que as consequências desses momentos ainda lhe reservavam, e sem perder o sorriso sereno e emotivo, percebeu que as mesmas não importavam. Tudo o que importava estava ali com ela - naquele instante e para todo o sempre - e olhou de novo a simplicidade da sublime paisagem. Emancipada dos seus medos, sentiu a coragem necessária para enfrentar todas as adversidades que a vida ainda lhe reservava, mesmo sabendo que a profunda saudade que o seu coração carregava, era maior que toda a paz que desfrutava. Era maior do que ela própria. A sua boca ainda amargava pela falta do beijo que a enlouquecia e o seu corpo ainda ardia de desejo pelo toque das carícias que a faziam perder a razão. 

Dentro daquele quarto, a milhares de quilómetros de casa e de olhar perdido na beleza da imensidão ímpar e quase irreal que a cercava, todos os seus pensamentos se resumiram num único desejo; poder partilhar a simplicidade daquele momento com o homem com quem desejava igualmente partilhar a sua vida e a vida que crescia em segredo dentro dela. Que estaria ele a fazer naquele instante? Pensaria nela da mesma forma que ela ainda pensava nele? Seria a sua saudade tão grande e atroz, quanto a distância que os separava e a dor que lhe lacerava o peito? Recordou a doçura do seu olhar e a ternura do seu sorriso e desejou naquele momento poder abraça-lo com força e dizer-lhe o quanto ainda o amava. O quanto sempre o amara.  O quanto jamais deixaria de o amar.

... / ...

Era ainda cedo e o esplendor da aurora saudava o dia com a sua áurea de cores mágicas e cintilantes, cegando a vista e ofuscando a nítida e longínqua linha do horizonte, com a sua elegância e serenidade. Solitário e madrugador, como um pássaro gigante sobrevoando os céus, o privado helicóptero gentilmente cedido por Niccolo Chianti - o milionário a quem ela comprara a casa que fora de seu pai - perturbava a paz de tão belo amanhecer com as suas hélices frenéticas e ruidosas, desvendando um cenário indescritível e quase imaginário à medida que se aproximava do seu destino. De coração palpitante, Elena observou em silêncio a vasta propriedade que agora lhe pertencia. Valia cada cêntimo dos largos milhões que a mesma lhe custara. Era tal e qual como ela a imaginara, nas inúmeras histórias que o seu pai lhe contara sobre aquele lugar. Era igualmente misteriosa e imponente, romântica e intimidadora ao mesmo tempo. Era o cenário vivo de uma paixão proibida, uma paixão banida e julgada por um delito social e hipócrita. Uma cela de portas abertas, que confinara a vida de um homem, que tudo o que queria era ser livre.

De olhar fixo naquelas muralhas, reflectidas no enorme lago como um castelo assombrado, sentiu-se apreensiva em relação à sua decisão, em querer fazer daquele lugar o que provavelmente ele nunca fora. Sentiu que contrariamente ao que pensava, não estava preparada para o enfrentar. Não naquele momento, um momento de grande importância na sua vida, mas igualmente de grande fragilidade emocional. Queria pisar aquele chão e conhecer cada canto daquela casa, mas queria fazê-lo com a coragem e a confiança suficientes para mudar para sempre a história daquele lugar e honrar o amor e a paixão que lhe foram roubados, e foi com alguma dificuldade que mandou o piloto dar meia volta e regressar, mas foi igualmente naquele instante, que soube exactamente para onde queria ir. Se até ali nunca havia escutado o seu coração, tinha chegado a hora de o fazer. De ouvir e obedecer ao seu apelo. De renascer das cinzas daquela imensa saudade que a consumia dia após dia, a mesma saudade que a mantinha viva e lhe alimentava a esperança.

Helga, Junho 2006

terça-feira, 8 de junho de 2010

O Homem sem Rosto


Aquela mulher, cujo corpo tinha a sensação de não lhe pertencer, mas que parecia encarnar naquele momento, despejou com prática e naturalidade o conteúdo de uma lata de atum para dentro do aromático refogado de tomate com coentros, que fervilhava no fundo do tacho, mexendo e envolvendo os ingredientes com cuidado.
- Cheira bem. - Observou com satisfação uma voz infantil atrás dela, fazendo-a voltar-se e sorrir. Nunca tivera filhos e naquele instante soube-lhe bem a sensação de afecto e cumplicidade entre ela e aquela criança - que pela sua aparência e estatura, não deveria ter mais de 12 anos de idade - concluindo sem dificuldade que se trataria do filho da mulher que encarnava.
- Obrigada. - Agradeceu, sem perder o sorriso terno e afável. Tapou o tacho, pousou a colher de pau e limpou a humidade das mãos ao avental, dirigindo-se naturalmente ao armário das mercearias - Que maçada! - Constatou com algum desagrado ao abrir a porta do mesmo - Ia jurar que tinha pelo menos um pacote de natas. E agora como faço o molho?
- Queres que vá buscar? - Prontificou-se - O supermercado ainda está aberto.
- Não te importas? Já está a escurecer.
- Não tenho medo do escuro. Aproveito e trago uma pastilha. Se tu deixares, claro.
- Claro que deixo. - Consentiu sorrindo, retirando o porta moedas da gaveta da mesa da cozinha - Toma. Deve chegar. - Informou, dando-lhe um par de moedas para a mão, passando a sua carinhosamente pelo seu cabelo rebelde e alourado - Traz duas pastilhas se quiseres. Tem cuidado com a estrada. - Aconselhou maternalmente.
- Não te preocupes. Estou habituado ao caminho.
- Leva o telemóvel. Qualquer coisa liga-me.
- Desde quando ficaste tão galinha? - Gracejou com alguma estranheza, como se não fosse habitual nela tanta preocupação.
- Leva-o. Pode ser? - Insistiu, sem saber exactamente porquê.
- Está bem. Eu levo-o.

Mexeu o refogado mais uma vez e verificou se a massa estava cozida. A naturalidade com que realizava tarefas - tal como cozinhar como se toda a vida o tivesse feito - causava-lhe uma sensação de estranheza, assim como tudo naquela casa. Parecia conhecer todos os seus cantos, no entanto sentia-se uma estranha dentro dela, perdida e deslocada. Procurando alguma companhia ligou a televisão. Reconheceu de imediato a jovem loura e bem apresentada que falava em frente a uma plateia de jornalistas. Era uma actriz. Vira-a em várias séries policiais, embora naquele preciso momento não se conseguisse lembrar o nome de nenhuma delas. Subitamente a imagem da bonita actriz desapareceu do ecran, dando lugar a imagens difusas e um pouco difíceis de perceber. Uma criança indefesa gritava e esperneava em agonia, enquanto o que parecia ser a sombra de uma forma humana, a mordia e comia, emitindo sons e grunhidos como um animal. Estremeceu e sentiu o coração bater mais depressa, como se o mesmo fosse a única coisa sua, que aquela mulher que encarnava possuía. Conseguiu ver finalmente com clareza um homem - sem rosto - de mãos esguias e firmes, segurando o frágil corpo daquela pobre criança, saboreando-a com a mesma satisfação e apetite de quem saboreia com prazer uma talhada de melancia, fresca e doce. Os gritos pararam, o animal parecia saciado e a sua vítima sem vida, porém o coração dela batia cada vez mais e mais - assustada. Em pânico! No fogão o refogado queimava e a massa engrossava.

O telemóvel vibrou sobre a mesa, sobressaltando-a, e apesar de atormentada apressou-se a atender - Sim?
- Sei que tu não és a minha mãe, mas por favor ajuda-me! - A voz assustada do outro lado da linha, estarreceu-a - Ajuda-me, por favor! Ele vem atrás mim! Tenho as tuas natas. Ajuda-me!
- Quem? - Quis saber apavorada, ainda com as imagens que acabara de ver na televisão a passarem na sua cabeça - Quem vem atrás de ti?
- Por favor! - Chorou, ofegante, assustado, escondido provavelmente - O homem sem rosto. Ele vai apanhar-me, e comer-me, e matar-me... ajuda-me! Ajuda-me! - Gritou, aflito e sem saída.
Naquele momento foi como se o chão se abrisse e a engolisse - lentamente. Não percebia se enquanto caía naquele buraco negro, abandonava o corpo daquela mulher ou se efectivamente o encarnava de vez. Estava escuro. Vazio. Silencioso. Não conseguia respirar. Continuava a cair na escuridão profunda. Desamparada e sem ter onde se agarrar. Sufocada, abriu os olhos, sacudindo o corpo num soluço forte e angustiado como se os seus pulmões acabassem de receber todo o ar que precisavam para respirar. O coração batia-lhe preso na garganta, ouvindo-se no silêncio da noite como um tambor descompassado. Sentia as pálpebras húmidas e a boca seca. Respirava ofegante e aterrorizada. Demorou algum tempo para perceber que estava deitada sobre a sua cama, com as mãos cravadas nos lençóis com tanta força, que lhe doíam os nós dos dedos. De olhar escancarado, tentou controlar a respiração e vencer o pânico, o medo.

As horas - pensou - como se fosse importante sabê-las naquele momento. Mas não teve coragem de se mover para olhar para o despertador sobre a mesa de cabeceira, apenas a escassos centímetros dela. Continuou de olhos escancarados, presos nas sombras e no vazio do tecto. O António, o seu marido - a sua salvação. Mas o António trabalhava por turnos e naquela noite pertencera-lhe trabalhar a noite toda. Só chegaria de manhã. Dali a uma eternidade. Estava completamente sozinha e assustada. Sentia a bexiga cheia, quase a rebentar, mas não se atreveria a sair daquela cama por nada. Em breve haveria luz. Em breve largaria os lençóis e as mãos deixariam de lhe doer. Em breve estaria calma, muito mais calma, e lentamente sentiu-se acalmar. Muito lentamente. Permaneceu quieta até o dia nascer. Até o António chegar. Quando sentiu a chave na porta, sorriu de alívio - ou chorou - não se lembra. Sabe apenas que saltou da cama quando o viu entrar no quarto e se jogou nos braços dele, sentindo-se finalmente confortada e protegida.
- Estás bem? - Perguntou um pouco hesitante e preocupado.
- Sim! - Respondeu apertando-o contra ela, como se não o quisesse largar nunca mais - Agora estou bem!

Instantes depois, ele servia-lhe um chá calmante, retirado dos seus armários, preparado na sua cozinha, servido nas suas chávenas. Aquela era a sua casa! Seria?
- Mais calma? - Perguntou com um sorriso carinhoso.
- Sim, obrigada. O chá está delicioso.
- Vou tomar um banho. Ficas bem?
- Vai. Estou bem. - Tranquilizou-o, acariciando a caneca quente entre as mãos, reconfortada pela sua companhia.
- Ah... já me esquecia. - Informou, retirando do bolso do casaco um pacote de natas, que colocou sobre a mesa com naturalidade - Trouxe o que me pediste. - E beijou-a na testa deixando a cozinha.
De olhar petrificado, ela sentiu o coração parar de bater dentro do peito e o chão fugir-lhe debaixo dos pés - como se mergulhasse de novo no mesmo vazio escuro e profundo - não apenas pela aterradora coincidência, pois tinha a certeza de não lhe ter pedido aquelas natas, mas principalmente pelas marcas cravadas na compacta embalagem, como desenhos de pequenas impressões digitais ensanguentadas.

Helga, Junho 2010

No âmbito do desafio de Junho para a Fábrica de Letras sobre o tema 'Estava Vazio'

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O Vestido

 
Sentada sobre a cama, Victoria deu um trago suave no vinho tinto e aveludado que saboreava sozinha, sem suspender o silencioso frente-a-frente com o vestido de noiva delicadamente pendurado no cabide ancorado na parede. Era um vestido elegante de uma simplicidade sublime, assim como o dia em que planeou vesti-lo. Um dia simples e especial. Um dia de sonho. Um sonho que Victoria nunca sonhara para ela, mas que se dispôs a realizar, sem fazer planos ou pensar nas consequências da sua impulsiva decisão.
- Casa comigo! - Pediu-lhe uma noite com paixão, quebrando todas as regras estabelecidas entre eles, levada pelo impulso de um momento de romantismo e entrega absoluta, uma entrega que quer naquele momento, quer em tantos outros, tinha a certeza de ser eterna, ao lado daquele que era sem dúvida o homem da sua vida. Com o seu olhar intenso e cor de mel, realçado pelo calor acobreado da lareira que os aquecia, Pedro aceitou o seu pedido com um fogoso e sincero sim! Não podia ser mais perfeito. Se aquele momento tivesse nome, chamar-se-ia felicidade.

Quando por acaso passou pela loja de Noivas na rua principal da Vila e o viu exposto na montra, como se o mesmo chamasse por ela, Victoria não resistiu à tentação de entrar e de o experimentar. Era lindo! Absolutamente magnífico e assentava-lhe que nem uma luva. Sem hesitar ficou com ele. De cada vez que lá voltava para o provar e ajustar, gostava ainda mais dele. Ansiava pelo dia em que ia poder mostrá-lo a toda a gente, a todas as suas amigas e principalmente a Pedro, a quem amava acima de tudo. O seu coração bateu mais forte, só de imaginar os seus olhos cor de mel iluminarem-se de orgulho e paixão, quando ela entrasse na Igreja - decorada a preceito e enquanto uma melodia tocada ao piano acompanharia a sua marcha nupcial. Era oficial, estava apaixonada por aquele vestido e por tudo o que ele representava.

Mas o que Victoria não sabia, era que o dia em que irracionalmente entrara naquela loja de Noivas, a sua vida mudaria para sempre. De olhar eufórico e cintilante e quando já não havia mais ajustes a fazer e quando finalmente o levou para casa, comunicou-lhe a sua compra. Comunicou-lhe como era lindo e maravilhoso e magnífico e fantástico, o seu vestido. Como todos os seus amigos o invejariam quando a vissem com ele vestido e como ele ficaria orgulhoso por ela ser só e apenas dele. Estava tão eufórica e fascinada, que não percebeu o pânico estampado nos seus olhos cor de mel. O medo, a insegurança. A dúvida. Quando finalmente parou de falar, esperando uma reacção igualmente emotiva por parte do homem com quem dividia a sua maior alegria, a única coisa que obteve como resposta foi o silêncio que se interpôs entre eles. Um silêncio assustador e acutilante que fez parar o tempo - e naquele preciso instante - Victoria percebeu que nunca iria usar aquele vestido.

Deu mais um trago no vinho e pousou suavemente o copo sobre a mesa de cabeceira. Retirou o batom da mala e sorriu confiante, antes de o usar, não apenas para retocar a sua maquilhagem, mas igualmente a sua vida. Quando Pedro chegou a casa, encontrou um vestido de noiva pendurado num cabide ancorado na parede, com um recado escrito a batom vermelho na sua longa saia de seda pura - Promete que não casas comigo! - Sorriu e pousou em cima da cama o fraque de abas de grilo, que tal como ela, também ele provara e ajustara em segredo e com bastante nervosismo. Procurou um marcador na gaveta e sobre a imaculada camisa branca de botões de punho dourados, que delicadamente pendurou ao lado do elegante vestido, respondeu - Prometo!

Helga, Janeiro 2010

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Acho que Te Amo

 
O Carlyle Hotel, era sem dúvida o seu hotel preferido entre todos os hotéis de Nova Iorque. De ambiente clássico e romântico, inspirava à criatividade e apelava ao requinte do ser mais comum, com as suas pinturas originais de Audubon e lustrosos pianos de cauda. À medida que caminhava pelo requintado e elegante lobby em direcção ao bar, Ginger não podia deixar de achar curioso que Steven Dorff, o director de programas da ABC Network, tivesse agendado uma reunião com ela na qualidade de jornalista do New York Times, logo ali, naquele espaço tão familiar e agradável numa sexta-feira à noite.
Sozinha e pontual como sempre fazia questão de ser, sentou-se junto ao balcão e despiu o casaco, que ajeitou delicadamente sobre o informal vestido, antes de pedir o seu Dry Martini com limão. De olhar sereno, saboreou-o calmamente, enquanto observava o ambiente em volta e se interrogava mais uma vez sobre o motivo daquele peculiar encontro. Se bem conhecia Steven, ele era um homem prático e funcional e um simples telefonema teria sido o bastante, para lhe dar a conhecer o teor daquela reunião.
- Desculpe... Miss Patterson? - Interrompeu um dos empregados com delicadeza.
- Sim?
- Tenho instruções para lhe entregar isto. - Informou, passando-lhe discretamente para a mão um cartão do hotel, com uma mensagem escrita.
- Obrigada. - Agradeceu um pouco hesitante, olhando subtilmente em volta, antes de ler com curiosidade as palavras escritas no pequeno pedaço de cartão. Tentando não se mostrar muito interessada no que provavelmente não passava de uma velha e gasta tentativa de engate em sítios como aquele, chamou o empregado que lho entregara - Desculpe, mas pode dizer-me quem lhe entregou isto?
- Procure junto ao piano. - Confessou, admitindo a sua óbvia cumplicidade com um suave e discreto sorriso, retomando o seu serviço.
Com alguma reserva, ela atreveu-se a percorrer com o olhar o canto mais recatado da sala, sentindo imediatamente um súbito e aprazível calafrio percorrer-lhe todo o corpo, quando encontrou o olhar intenso e envolvente que a contemplava. Mantendo o seu sereno e inabalável charme, ele ofereceu-lhe o esboçar de um sorriso irresistível e sedutor e por momentos permaneceram silenciosos e quietos, separados ela curta distância que lhes prendia o olhar sugestivo e penetrante.
- Adorei a gravata. - Confessou insinuante, quando ele se aproximou dela, saboreando calmamente o seu whisky - Alguma ocasião especial?
Discretamente ele segredou-lhe ao ouvido, usando de alguma traquinice - Nem por isso. Apenas adoro a maneira como me despes, quando me visto assim.
- E como esperas que isso aconteça? - Desafiou, sensual e travessa - Com piropos como 'uma mulher bonita não deve beber sozinha'? - Provocou intencionalmente, referindo-se às palavras escritas no pequeno cartão - Um pouco antiquado, não achas?
- Consegui a tua atenção, não consegui?
- Sem dúvida, mas não fiques tão convencido. Estou aqui em trabalho. - Informou esperando desapontar o seu sorriso triunfante, porem tentador.
- Eu sei. - Respondeu inabalável, surpreendendo-a.
- Sabes?
- Estás aqui para te encontrares com o Steven Dorff.
- E como sabes isso?
- Ficarias surpreendida com as coisas que eu sei. - Admitiu confiante, levando o copo à boca.
- Estou a ver. Deixa-me adivinhar... ele não vem, certo?
- Desapontada?
- Um pouco. - Mentiu,  não resistindo em apimentar ligeiramente o seu olhar insinuante, brincando suavemente com a bebida dentro do copo - Teria vestido algo mais confortável, se soubesse que eras tu.
- Estás linda! - Elogiou, incomodando-a com a intensa sinceridade do seu olhar - Queria apenas ver-te outra vez.
- Podias ter telefonado.
- Terias vindo?
- Estou aqui agora.

Por momentos olharam-se apenas, revelando através do silêncio das palavras que não diziam, uma devastadora vontade de ceder ali mesmo à luxúria e à paixão que os incendiava, e instantes depois, abalroavam com os seus corpos eufóricos e ávidos de prazer, a porta do quarto intencionalmente reservado para uma noite de sedução, arrancando a roupa com impaciência, derrubando objectos ao acaso com as suas carícias ardentes e os seus beijos obscenos. Como se o mundo fosse um lugar sem importância, mergulharam no seu próprio universo de erotismo e sensualidade, saciando aquele intenso e fogoso desejo carnal, com a voracidade de quem sacia um vício selvagem e insaciável.

Ginger não sabia há quanto tempo fixava o tecto lívido e suavizado pela penumbra da noite, deitada sobre a enorme cama daquele quarto tão impessoal quanto acolhedor. Sabia que tinha que ir, mas simplesmente não tinha vontade de o fazer. Olhou Julian, que a seu lado dormia serena e tranquilamente, embalado pela chuva que salpicava as vidraças lá fora. Observou-o por largos momentos, adorando-o em silêncio, como quem contempla uma obra de arte. Um quadro raro e único que se deseja adorar para sempre. Uma tela pura e envolvente, onde ela mesma desejava pintar todos os seus sonhos e fantasias. Ás vezes sentia que o prazer físico que sustentava aquela ambígua e estranha relação, já não lhe bastava. Ás vezes queria mais, muito mais que os meros jogos de sedução e os encontros ocasionais, de uma paixão obsessiva e sem compromisso.
- Acho que te amo, Julian Lewis... - Confessou num suave murmúrio, esboçando um sorriso  terno e cúmplice do seu olhar secreto, como o sentimento que carregava com ela. Devagar, para não o acordar, afastou os lençóis e com cuidado saiu da cama. Apanhou a roupa espalhada pelo chão e olhou-o uma vez mais com ternura e saudade, antes de sair do quarto, deixando-o a meio da noite como sempre o deixava, esperançada que um dia ele lhe pedisse para ficar.

A chuva já não caía e a claridade de mais um dia gélido de Inverno, acariciava-lhe suavemente o corpo relaxado e adormecido, confortavelmente aninhado entre os lençóis e protegido pelo aconchego da  temperatura amena do quarto. Um calor suave, que se fundia com o seu subconsciente distante, que o envolvia em cenários paradisíacos e imaginários. Pronunciou algumas palavras sem sentido e remexeu-se na enorme cama, recusando-se a deixar as suas fantasias e sorriu de forma inconsciente, esticando o braço e procurando o calor do corpo que o aquecia nos seus sonhos, mas tudo o que encontrou foi um lugar vazio e frio, que lhe arrefeceu o espírito e o fez abrir os olhos.
Resignado, suspirou entristecido, acariciando suavemente o lugar agora desocupado, cedendo à frustração e ao vazio que sempre o invadia, de cada vez que acordava sozinho depois de partilhar apenas uma parte da noite com ela, onde a solidão deixada pela sua ausência, era quase tão grande quanto o prazer único e infinito que desfrutava na sua companhia.
- Acho que te amo, Ginger Patterson... - Confessou para o vazio da cama, com a voz embargada pela saudade e pela desilusão, esperançado que um dia ela ficasse.

Helga, Novembro 2008

No âmbito do desafio de Maio para a Fábrica de Letras sobre o tema 'Paixão'

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Os Corvos


Há muito que anoitecera, quando completamente vestida de negro, Wendie desceu finalmente a centenária escadaria da mansão onde habitava, sentindo o que sempre sentia de cada vez que pisava aqueles degraus. Aquele nunca fora o seu lugar e aquele lugar nunca a deixou esquecer isso.  Era como uma cela de portas abertas de onde nunca conseguira escapar, apesar das inúmeras vezes que tentara. Uma masmorra de luxo que nunca lhe pertencera, nem mesmo agora, que uma parte da mesma era inteiramente sua, ou pelo menos assim pensava. À medida que pisava o rústico mármore gasto pelo tempo, podia sentir a atenção de toda a família sobre si e quase adivinhar o pensamento sórdido e mesquinho de cada um deles, que nem mesmo num momento delicado como aquele, se poupavam de a condenar e de a julgar, como se a quisessem responsabilizar pelo inferno em que tinham transformado a sua vida. Havia alturas em que achava que eles estavam certos - ela era a única culpada da encruzilhada em que se encontrava.

Estavam lá todos. Os funcionários do HSBC Holdings Bank e alguns dos seus melhores e mais respeitáveis clientes, entre os quais os Duques e os Príncipes de Kent. Os amigos do costume e os inimigos de sempre, infiltrados como espiões, como se quisessem certificar-se pessoalmente do sucedido. Até Nora, a amante pública do seu marido, parecia fazer parte da família, ao olhá-la do alto da sua arrogância  enroscada no seu milionário Vison que exibia como um troféu. Em silêncio e esforçando-se por manter a cabeça erguida e o olhar firme, Wendie passou pelo meio deles, como quem passa pelo meio de um bando de corvos sedentos e vigilantes.

Usando o seu melhor Armani e de sapatos primorosamente engraxados, Lord Charles Langley, esperava-a no meio do salão, acomodado no seu leito de morte sobre o sinistro caixão de mogno preto forrado de pura seda. Com uma expressão apática e indolente, Wendie aproximou-se do corpo do seu falecido marido e encarou-o pela última vez. O seu rosto definhado e embranquecido como uma vela de cera apagada, mantinha as mesmas feições austeras e rudes de sempre, e os quase vinte anos de idade que os separava, eram agora mais visíveis do que nunca nas suas faces côncavas e flácidas, porém por detrás da sua gélida palidez, o seu semblante hipócrita e dominador permanecia intacto e inalterável. Até na morte, Charles escolhera ser arrogante e superior, tal como o fora em vida. Estava-lhe no sangue, mesmo que o mesmo já não lhe corresse nas veias.

- Maldito sejas! - Pensou para si - Oxalá ardas para sempre no inferno! - desejou secretamente, sem conseguir lamentar a sua morte por um segundo que fosse e num acto absolutamente  irreflectido e ignorando as reacções que poderia provocar com a sua atitude, virou costas, caminhando de novo pelo meio do mesmo bando de corvos, provocando a sua ira, sentindo-os esvoaçar pela sala, sobre a cabeça dela, por todo o lado. Apressada voltou a subir a enorme escadaria  de mármore e refugiou-se no seu quarto. Encostada à porta fechada, sacudiu o corpo num soluço profundo e sentido e cedeu por fim ás lágrimas que ainda não tinha chorado e à dor que ainda não tinha sentido. Deslizou pela madeira maciça e envernizada e deixou-se cair no chão, abraçando os joelhos com os braços, tombando a cabeça sobre os mesmos com a força e o desespero de quem perdeu o seu amparo, o seu sustento e o seu rumo, ainda que tudo isso fosse o seu maior infortúnio.

Helga, Novembro 2008

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Peppe


Ainda não acreditava que estava ali, que tinha trocado o caos da cidade pelo canto das gaivotas, o trânsito infernal e o fumo dos escapes pelo cheiro do mar. Ainda não acreditava que tinha trocado Nova Iorque pela tranquilidade absoluta e paradisíaca daquele lugar esquecido no mundo e abençoado pelo Mediterrâneo. De cabelos soltos e de alma livre, Loraine segurava o leme do pequeno veleiro entre as mãos, traçando sem saber nas águas calmas e límpidas daquele mar imenso e cintilante, a rota do seu destino. Um destino escolhido ao acaso ou tão somente um acaso escolhido pelo destino. Não importava. Ao longe o eco da imaculada e singular brancura da encosta, devolvia-lhe uma paz infinita e nunca antes sentida, como se sempre tivesse pertencido a um lugar que não conhecia.

Esboçou um sorriso sereno e inspirou a brisa marinha e exótica, sentido cada poro e cada célula do seu corpo purificar com tamanha liberdade. Contemplou Peppe, que alheio à sua felicidade, amarrava o mastro da enorme e cândida vela. Amava tudo nele. Era perfeito! O sorriso doce e o olhar envolvente. O seu sotaque italiano e a maneira imperfeita com que prenunciava o nome dela. A forma como a olhava e a aconchegava nos seus braços fortes e ternos quando a noite caía. Sabia que não merecia tanto, mas não se atrevia a contestar a felicidade que sentia naquele momento. Um momento efémero e fugaz, em que tudo era único e especial. O Sol podia nunca mais acariciar a sua pele e a brisa suave e perfumada podia não voltar a brincar com os seus cabelos, mas aquele momento seria para sempre seu.

Quando regressou ao Hotel, Loraine estava exausta, mas inteiramente feliz. De sorriso pleno e repleto de satisfação, atirou o enorme chapéu de palha sobre a cama e de olhar extasiado de paixão, elevou-se nos bicos dos pés e rodeou o pescoço de Peppe com carinho.
- Obrigada pela tarde maravilhosa. Adorei!
- Eu também. - Confessou no seu sotaque melodioso, rodeando-lhe a cintura e acariciando-lhe com ternura a face quente e ainda ruborizada do sol - Que queres fazer agora? - Questionou com uma engenhosa inocência, sugerindo-lhe uma proposta irrecusável no seu olhar de menino traquina.
- Amar-te. Quero amar-te, Peppe. Quero amar-te todos os dias da minha vida.

Helga, Fevereiro 2009

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Elena


Sozinha naquele quarto vazio e mal iluminado pela penumbra prateada da noite, Elena sacudiu o corpo em fortes soluços de dor, a mesma dor que lhe esmagava o peito e lhe apertava o coração como uma mão gigante com os seus dedos desumanos e atrozes. Gemeu de angústia, sentindo o corpo definhar a cada soluço seco e sofrido. A seguir sentiu as lágrimas, densas e quentes, queimarem-lhe a pele do rosto com a sua impiedosa acidez, dissolvendo-lhe a sua máscara de mulher fatal, manchando a delicada colcha de linho com o remanescente de uma maquilhagem antes intensa e ousada. Sentia-as na boca, fundido-se com o gosto amargo que a agonizava. Um gosto de nada e um gosto de tudo. Um gosto de paixão com um travo de desonra. Desesperada, cerrou os punhos e esmurrou a cama, atormentada pelo odor que brotava do seu corpo. O perfume da luxúria. O aroma da culpa. O cheiro do ódio. Ódio dela e apenas dela. 

Num gesto impulsivo e obstinado, levou as mãos ao peito e rasgou o deslumbrante vestido de seda, vermelho da cor do pecado. Arrancou-o do corpo como uma maldição, como se com ele arrancasse tudo o que sentia e não queria sentir, mas o seu odor fétido e excitante ficou-lhe no corpo, na pele. Ficou para a enlouquecer e para lhe lembrar os erros que cometia, uns atrás dos outros. Para lhe lembrar o amor que renunciava em prol da vida de luxo que conquistara ao lado de um homem que não amava. O abismo que a separava das coisas que tinha e das coisas que queria ter, era apenas o resultado desses erros. Caminhava sobre uma ponte suspensa, uma ponte de orgulho e teimosia. De luxo e egoísmo. Se sabia isso, porque era tão difícil escolher para que lado cair? Era difícil, porque Elena sabia que estava perdida fosse qual fosse o lado que escolhesse.

Helga, Junho 2006

No âmbito do desafio de Abril da Fábrica de Letras sobre o tema 'Abismo'

sexta-feira, 26 de março de 2010

Liberdade


Montana. O quarto maior estado dos Estados Unidos, porém o menos povoado de todos. Terra de cores e contrastes, de planícies e montanhas. De cavalos e Cowboys. Já não se lembrava exactamente dos motivos que a tinham levado a refugiar-se num lugar como aquele, tão distante de tudo. Distante de casa e da vida cosmopolita que sempre conhecera. Se era espaço que precisava, tinha-o encontrado. Tinha encontrado muito mais do que isso. Nova Iorque ficava a cada dia mais remota e longínqua. Conseguira finalmente vender o amplo apartamento em Greenwich Village, depois de uma troca exaustiva de e-mails e telefonemas com o seu agente imobiliário. Ainda mantinha a sensação de não ter feito um bom negócio, um apartamento daqueles valia definitivamente muito mais, mas os momentos que lá vivera não lhe deixavam saudades nem motivos para regatear. O passado não se regateia. Arruma-se.

Ao contrário dos amigos, que nunca se esquecem, apesar de a maioria deles ainda não ter conseguido digerir a ideia e a possibilidade de alguém poder trocar uma cidade como Nova Iorque, por um lugar com pouco mais de 1800 habitantes. Ela própria estivera em festas mais povoadas. Mesmo assim não conseguia evitar um sorriso terno e saudoso, de cada vez que pensava nas suas expressões de choque e de espanto, pela sua decisão. Chamaram-lhe louca e irracional, entre outras coisas menos simpáticas, quando informou a direcção do Bellevue Hospital Center, um dos mais avançados e sofisticados hospitais de Manhattan, do seu pedido de transferência. Contrapuseram ofertas e renegociaram condições para não perderem uma das suas melhores pediatras, mas ela não podia ficar. Não podia ficar nem mais um dia naquela cidade e eles sabiam isso.

Sentada no alpendre de Trail Creek Ranch, nos arredores da pacata povoação de Townsend, a 48 km de Helena, a capital de Montana e apenas a 30 minutos do Hospital de St. Peter's onde actualmente exercia a sua especialidade, balançou o corpo relaxado no clássico banco de madeira e apreciou a noite. Era uma noite calma e serena de final de Verão, abençoada pelo canto nocturno dos grilos e pela brisa amena e perfumada do campo. Ao longe, não muito distante dali, podia ouvir o ambiente festivo entre os boieiros depois de um árduo dia de trabalho. A alegria da música Country e o riso contagiante das mulheres, que trocavam de par como se ninguém fosse de ninguém e todos pertencessem naturalmente uns aos outros. Ajeitou o fino casaco de caxemira junto ao corpo e prendeu o longo cabelo dourado atrás da orelha. Abriu o diário que segurava nas mãos na primeira página e com um sorriso acariciou a ponta da caneta com os lábios, antes de começar a escrever.

"Querido Diário,

O meu nome é Alex. Não é Alexa, nem Alexandra. É apenas Alex e escrevo nas tuas páginas pela primeira vez. Nunca antes vi interesse ou necessidade de abrir o meu coração ou partilhar os meus sentimentos com um pedaço de papel como tu. Nunca antes até hoje, até agora. Provavelmente porque estou aqui sozinha neste lugar tão estranho e distante, quanto acolhedor e familiar, sem ninguém com quem partilhar o som e o cheiro do mundo que acontece mesmo à minha frente. Todos os meus sentidos estão baralhados desde que cheguei aqui. O que pensava serem certezas, não passam de dúvidas e o que pensava serem dúvidas, não passam de emoções fortes que me enchem o peito de saudade, mesmo antes de partir. Um lugar tão diferente de mim, como eu deste lugar. Aqui a natureza corre livre e selvagem. De onde eu venho a liberdade oprime a natureza. Aqui, atrevo-me a dizer, é o paraíso. Um paraíso raro e único, como um rio que corre só para mim. Um rio imenso e misterioso. Tal como ele. River, é o seu nome. Não podia ser outro nome. Um puro-sangue de coração forte e indomável. Uma besta de olhar meigo e profundo. Não falo de um animal. Falo de um homem e das coisas que ele me faz sentir, como se não existisse mais nenhum homem neste lugar distante. Como se não houvesse mais nenhum homem no mundo. O meu coração bate depressa quando ele se aproxima e bate ainda mais depressa quando ele se afasta. Talvez porque aqui tudo é diferente. Até as emoções. Aqui as estrelas saem à noite e iluminam o céu como diamantes cintilantes e únicos. Uma jóia natural e preciosa que dinheiro algum jamais poderá comprar. Aqui a terra cheira ao couro das selas e o chão estremece com o galopar dos cavalos e o dia amanhece com os gritos estridentes dos boieiros pela alvorada. Aqui tudo é perto, porém imenso e magnífico. Aqui o sol encontra a lua num beijo terno que acarinha a noite e se despede do dia. Aqui sou feliz. Aqui sou livre. Livre como nunca fui. Livre como nunca serei."

Helga, Setembro 2009

domingo, 21 de março de 2010

Uma Casa da Cor do Destino


Ana era uma mulher comum, com medos comuns e aspirações comuns. De caracóis perfeitos como fios de chocolate aveludados, tinha um brilho especial nos olhos negros e cheios de vida. Um brilho sonhador e optimista, que lhe espelhava na tez mestiça a luz da sua alma. Foi sem perder esse brilho, pleno e confiante no olhar, que pegou na resumida bagagem que trazia com ela e subiu os singelos degraus que a separavam da casa, que de ora em diante seria o seu pequeno grande mundo. 

Era uma casa soalheira de chão de pedra e paredes pálidas, forradas com motivos florais gastos e desvanecidos pelo tempo. Presas nas janelas, as longas cortinas de renda antiga, também elas marcadas pelo tempo, balançavam suavemente com o sopro da aragem morna do dia, como os véus de uma noiva feliz e invisível. No meio do salão jazia uma velha poltrona de cornucópias douradas e braços de madeira gasta. Uma poltrona esquecida ou simplesmente deixada para trás, junto à lareira apagada e repleta de histórias contadas ao serão.
 
Era a casa mais bonita que Ana alguma vez vira. E depressa a tornou ainda mais especial. Apanhou os longos caracóis num arrematado rabo-de-cavalo e arrancou das paredes um passado que não era seu.  Sujou o cabelo e salpicou a roupa de cores quentes e intensas. Laranja pela liberdade que sentia e verde tília pela paz que lhe inundava o espírito. Azul pelo sorriso que não conseguia esquecer. Um sorriso mais bonito que aquela casa, que era a casa mais bonita que alguma vez vira.

Perguntava-se a si mesma de que cor queria pintar o seu futuro, quando o viu passar entre trinchas e latas de mil cores, no corredor da loja de tintas. De camisola azul e jeans gastos, ele sorriu-lhe, como se ela fosse aquela por quem há muito ele esperava e como jamais alguém lhe havia sorrido antes. Naquele instante Ana teve a certeza da cor que procurava. Era a cor da blusa dele. Azul seria para sempre a cor daquele momento. Azul seria a cor do seu destino.

Helga, Outubro 2008